quinta-feira, janeiro 26, 2006

Formas mutáveis

O que fazemos à tarde é ver estampas,
vestindo e desvestindo fugazmente
aqui um rio oculto, ali um monte
com penas de pardais, fontes submersas,

e escarpas monstruosas, atravessadas
por pontes de veludo, verde e rosa,
que deslizam, elas mesmas, sobre os gumes
de espadas perfiladas, simplesmente.

O que fazemos de manhã é quase o mesmo:
é ver navios subindo nas eclusas
que a água enche, no sussurro ténue

de mil medusas abrindo lentamente,
sob a suspeita do corpo estranho e móvel
que as afaga; e o mastro rasga o céu
de nuvens altas.

À noite, o que fazemos é o deserto.
Comparativamente, isto é,
porque há camelos na linha do horizonte

entre colinas redondas como pêssegos,
e beduínos que as mordem, trôpegos
de tanta fome e areia e falta de água.

Passa a língua nos lábios, e na folhagem
docemente marulha o rouxinol.