domingo, julho 09, 2006

Almanaque24

Prezado leitor: o Almanaque23 encerra aqui a sua primeira série. Os seus colaboradores (incluindo os mais virtuais) agradecem a atenção dispensada.

Índice

(Nota: os poemas são indicados por ordem cronológica; para lê-los, clique nos respectivos títulos)

Bernardo Pinto de Almeida

Segundo poema de Setembro
Tudo o que ficou por dizer
Errata
Pwema, 6

Graça Videira Lopes

Flamingos
Uma cantiga amável
Em louvor das bicicletas
Vudu às 3 da tarde
Sete rios e um lago (muito urbano)
Nota
Outro poema urbano
Motores de rega
Sobre um conto infantil
Biblioteca
Formas mutáveis
Ao caçador de borboletas
O assobio
Contabilidade cósmica
Primavera
Da margem sul (I)
Carta
Fábula ou o direito à preguiça
Alhos e cebolas
O artista no ateliê
Sequência exclamativa
Os rios ibéricos
O deserto
A flauta de Pã
Numa fotografia africana
O estado do mundo às 10 da noite
Zen
O vestido de ramagens
Em Lisboa, sobre o mar
Parte II - Encruzilhada
Parte III - Do saque
Epílogo
A a Z
Efemérides
Ainda sobre o 10 de Junho (Dão)
A clareira
Sobre física quântica

LF Duarte

Uma história de amor
A Ilha

Manuel Pedro Ferreira

Dez Poemas
Dois poemas para Fiama
Desencontro
Do mau metano

Nuno Júdice

Botânica: O cipreste
Licor
Edição crítica
Botânica: O cedro
Equação luminosa
Manhã
Flos Sanctorum
Heresia
Nefelibata
Epigrama volátil
Eva
Primavera urbana
Infinito
Delirium tremens

Pedro Diniz Sousa

Poesia

A Felicidade

sexta-feira, junho 30, 2006

Sobre física quântica

Não sei contar as areias do mar.
E no entanto, o infinito é esta estrada
larga, onde às vezes se ouve um pequeno
pássaro cantando na berma. Ou assim
parece. Em frente, o ar vibra, desenhando
um piano de cores. Mais além. O que ficou
para trás, cobre-o a bruma no sopé
dos montes, tão branca e leve como
a renda antiga. Ou a flor da neve.

Não sei contar as estrelas e os cometas.
As partículas de luz. E no entanto,
infinitos astros ardem lentamente
no lago quieto de um único olhar.
Peixes prateados e risonhos, imagino,
habitam as profundezas. Ou graves,
da gravidade lenta das baleias brancas.

As ondas rebentam na praia, a lua,
parece, faz rodar as marés. O infinito
é agora uma nítida ilha, a que nasce da linha
do horizonte como uma miragem.
Incontáveis ilhas. Incansáveis barcos.
Este que agora singra no espaço
curvo, e que se desvia da rota.
Por exemplo, o tempo.

E no entanto, a noite
gira no seu arco perfeito e improvável.
Algures, alguém observa o improvável
céu, em busca dos centauros e da ursa maior.
(na cauda da mais pequena, a estrela polar).
Aqui, de onde o olhar abarca, o infinito
tem a nítida forma de uma abóboda
com janelas. De uma abóboda manuelina
com janelas, cordas e flores exóticas.

Eis, portanto, um mapa e algumas equações.
As que descrevem a lenta subida da seiva
nos caules verdes, no caminho da colina.
As que anotam a água fixa dos glaciares,
ou declinam a neve. Mesmo as transviadas,
interrompidas bruscamente por um erro
de cálculo e de onde os átomos jorram
em cascatas como fontes ao sol.

Repousa simetricamente o claro coração
dos elementos. Conhecemos os seus nomes
um a um. Por exemplo, o ouro (pepitas,
num rio antigo). Num certo sentido,
o infinito é uma escada em espiral na torre
gótica da margem. Um número, enfim, um degrau
mais além. Aqui, debaixo da lua, habitamos
a casa dos limites. E sob o arco perfeito da noite .

Continuaremos a contar as figuras do infinito,
a metê-lo em tubos, quiçá seguindo a pauta
de uma sinfonia barroca para órgão e oboé.
Ao fundo, as nebulosas estendem os seus
braços à velocidade da luz. Medusas, talvez.
Poeira branca. Na margem direita do rio, um
pescador retira uma carpa (prateada) do anzol.
E os peixes do mar.

sexta-feira, junho 23, 2006

A clareira

(da série Monstros)

Conta-se que no Cerro da Figueira
uma bruxa tinha por hábito aparecer.
Em noites de lua nova, confundida
com as sombras, entretecia grinaldas
de feitiços, sob o olhar estático
dos mochos e o salto acrobático
das rãs. Oh caldeirões ferventes, monstruosos,
onde as asas dos mosquitos rodopiavam
num caldo insuspeito de hortelã!
Mais diziam que, ao cheiro de enxofre,
das pedras, dos buracos, assomavam,
lagartos, lagartixas, as aranhas,
baratas, centopeias, e uma rola
transviada procurando, em desespero,
uma saída para o vasto céu nocturno
e estelar. A bruxa, impávida, seguia
o seu destino, que era, fatalmente,
o de habitar clareiras, as mais propícias
ao Príncipe das Trevas e à sua corte infernal
de Belzebus. No Cerro da Figueira,
há muito tempo, crepitava o fogo antigo
das histórias, e o seu fumo leve acompanhava,
intangível, inefável, ondulante,
o concerto das cigarras e das rãs.

sábado, junho 17, 2006

Pwema, 6

Se eu pudesse fazia-te princesa,
rainha dos gatos, madressilva,

encontro à noite numa auto-estrada,
flor de lótus a nascer do sangue.

Ou então ravina de onde a ave presa
do canto voasse à mais alta ogiva,

tomar por sua a lua incendiada
até que o voo interrompesse exangue.

Se soubesse, ao menos se soubesse,
na tua boca um beijo ir acender,

eu fazia-me dança e fazia-me prece,
ou fazia-me chama, rosa do amanhecer,

príncipe da treva que a razão desconhece.
Se soubesse, fazia-te mulher

Bernardo Pinto de Almeida

Ainda sobre o 10 de junho (Dão)

Canta um passarito nas traves do celeiro.
O seu voo interior habita a casa
em ruínas, juntamente com o rasto leve
do cheiro das maçãs. Lá fora, as vinhas
crescem, em carreiras largas e ordenadas
(para a passagem dos tractores). Ordenado
estava que crescessem e se multiplicassem.
Na matriz da terra, ao que parece.

sábado, junho 10, 2006

Efemérides

O preço da pimenta sofreu uma ligeira baixa.
A produtividade a bordo espera ventos favoráveis.
O crescimento económico flutua.
O verão chegou à avenida de Berna.

terça-feira, junho 06, 2006

A a Z


As mulheres loiras e azuis, as mulheres
verdes confundidas na folhagem, as mais
visíveis mulheres-corça, esguias e castanhas,
as mulheres vestidas, as mulheres despidas,
as de longos cabelos rente à água, as róseas
mulheres deitadas, as que se sentam
ao centro e à direita, as que atravessam
incólumes as linhas da perspectiva – viu-as
o olhar do pintor ou pousaram na tela
como pássaros? Entre as tintas,
observam o mundo. E assobiam.

domingo, junho 04, 2006

Epílogo

Sons de música, ao longe.
Adormece, com a noite, devagar.
A cabeça no convés, os pés na água.

quinta-feira, junho 01, 2006

Parte III - Do saque

Tenho a amor comigo e se não tivesse
faria contigo o que eu quisesse:
partia num barco, circum-navegando
à volta de ti. No cabo mais fundo,
as velas ao vento, entrava na barra.
Nem gritos, nem preces te iriam valer.

Ofegante, o corpo deitado na praia
mal saberia indicar a direcção dos navios.

segunda-feira, maio 29, 2006

Parte II - Encruzilhada

A Sul, as oliveiras.
A Norte, vinhas e pinhais.
No interior das terras, os piratas estudam
atentamente as placas de sinalização.
Qual o caminho de regresso ao mar?

quarta-feira, maio 24, 2006

Em Lisboa, sobre o mar

vi chegar navios. Atravessavam
a sombra dos guindastes, majestosos
e lentos a entrar no cais. Vi,
na outra banda, a curva dos montes
e antigas fogueiras traziam mensagens
de Almada ao castelo, cercados
os homens de histórias de mar.
Vi chegar ao longe um canto
em surdina, cruzava um veleiro
na margem de cá. Planando,
o comboio na praça do Império,
rosáceas nos vidros, os claustros,
as cordas, os túmulos brancos
à beira do rio, entre bicicletas,
pontes de madeira com homens
suspensos face ao estuário
da margem de lá. Tão largo é
o dia! O amor tão fácil! Tão perto
o mar alto, abertas as rotas de anis
e coral! Contigo me irei
nas barcas antigas ao cabo
do mundo, seguindo as baleias,
atrás dos golfinhos. Vi uma gaivota
que veio de lá.

Em terra um mastro indica o caminho
dos piratas. Ao nascer do dia rumaram
a norte, atravessando hortas e pomares
com a pressa furtiva de quem está
meramente de passagem.

Tão breve é a noite! Tão branca é
a vela que oscila no rio! Tão fortes
os cabos que prendem na doca
os grandes cargueiros e os rebocadores!
Tenho o amor comigo
e se não tivesse
o rio faria o que eu não fizesse:
abriria os braços, deixando as marés
penetrar na terra, devagar cobri-la
de mar e sargaços. Nas águas
que sobem, cardumes de peixes
minúsculos afagam a margem de lá.

E o lodo enche-se de ameijoas
e berbigão. No espaço, o sabor líquido
da ribeira num horizonte de colinas.

domingo, maio 21, 2006

O vestido de ramagens

Dame Gilberta pousa o chapéu na cadeira
de palhinha. De repente, não lhe ocorre
a lembrança do que tinha vindo fazer.
Pela janela, o mar, o céu, o vento
sossegado, atravessam, em tom sfumato,
a transparência aérea das cortinas, que
banham a sala numa luz de outras eras,
quando era verão em todos os recantos
milimétricos do mundo. Dame Gilberta
sente-se vagamente numa história, cujos fios
parecem entretecidos pelos grãos luminosos
das poeiras em suspensão. É isso que a faz
parar na orla do tapete, presa numa teia
invisível de tempos sobrepostos e voláteis,
que convergem fugazmente no momento
exacto do dejà-vue. Bolas de sabão.
Poderia, com um gesto breve, desfazer
a película que a prende nesse arco-íris
flutuante, convocar a sombra da varanda,
por exemplo, esse mundo do outro lado
de onde chegam vozes abafadas de crianças
e o tilintar dos talheres. Dame Gilberta
pressente que o autor da história está sentado
na cadeira de palhinha, também ele imóvel,
também ele interdito, sem saber exactamente
o que fazer de um chapéu. Interrompeu,
de forma brusca, um qualquer sonho, onde
uma jovem mulher ganhava forma, num vestido
de ramagens (cor-de-rosa?), visível nitidamente
em contraluz. Temos agora um autor e a
personagem na mesma sala, onde, pelas cortinas
entreabertas, se desenha, a espaços, na madeira
do soalho, o rendilhado móvel das folhas
verdes do jacarandá. É a imagem que persiste
e se imobiliza, e que vejo no espelho, por sobre
o contador: Dame Gilberta olhando quem a olha,
enquanto o horizonte se enche de barcos e o céu
das três da tarde se demora no mais perfeito azul.

domingo, maio 14, 2006

DELIRIUM TREMENS

Os artistas precisam de álcool: a bebida
que os inspira. Na sua exalação, encontram
as nuvens de cor que os inundam da água
do espírito, onde eles mergulham para
capturar os peixes do sonho. De noite,
porém, pesam os pensamentos que
juntaram durante o dia. De um lado, o
prato das reflexões; do outro, a balança
inclina-se com as frases amargas, as
sentenças críticas, as imprecações contra
os deuses. Atiram tudo para o chão; e
pegam na garrafa, para voltar a encher o
copo. Mas a garrafa está vazia; e a sede
obriga-os a procurar outra bebida. Torneiras
fechadas, resta-lhes escreverem.

Nuno Júdice

terça-feira, maio 09, 2006

Zen

Na cozinha, o voo desordenado
de uma borboleta nocturna.
Podia ser normal. Será. Difícil
é o caminho para a janela
entreaberta. Talvez a noite
lhe ensine a rota dos mistérios, agora
que pousou no exaustor. Medita,
creio eu, no mês de maio. E assim,
discretamente, apago a luz.

sábado, abril 29, 2006

Errata

à Ana Luísa Amaral

Na página 60, onde se lê:
"fundo espelho o rosto que me visse"
deverá ler-se "o quanto, o como, o quê"
(lembrar a correcção no índice).

Depois da citação de Mallarmé
em abertura: "Jamais um lance
de dados etc." ponha-se: "Sê
tu a margem onde um rio dance".

E, finalmente, onde "Conclusão"
(decerto posta ali pelo Editor)
leia-se apenas: "Última canção",

e no verso final onde está "mor-
te" pôr igual à primeira edição:
"um corpo desenhado pelo amor".

Bernardo Pinto de Almeida

quarta-feira, abril 12, 2006

O estado do mundo às 10 da noite

O meu avô jantava invariavelmente às sete
da tarde. Às oito ouvia as notícias,
a que se seguia o jornal, e tarefas várias,
como, por vezes, abrir um livro com
uma faca de papel comprada em Toledo.
Assim, por essa altura, o estado do mundo
às dez da noite era invariavelmente horizontal.
A invariabilidade do meu avô incluía
ainda uma certa verticalidade diurna,
aliada a lenços de algodão dobrados
na mais perfeita geometria. O meu avô
gostava de Aquilino e, no fim da vida,
tinha alguma dificuldade em perceber
a literatura contemporânea. Só muito
mais tarde achei extraordinário que alguém
que se deitava às dez da noite se interessasse
por literatura contemporânea. De momento,
limitei-me a não saber explicar-lhe.
Creio, na verdade, que foi ele quem
me explicou. Um avô que faz perguntas
serve para isso, exactamente. Muito embora
esteja pronta a conceder que o estado mundo
às onze da noite merece também alguma atenção.

segunda-feira, abril 10, 2006

Numa fotografia africana

A criança observa o sapato, com
um olhar doce. A liberdade de escolher,
a absoluta liberdade de correr, pára
nos esgotos a céu aberto. São coisas
que se sabem, mas que as botas,
de sete léguas muito embora, não podem
e muito menos devem explicar.
Nem a poesia. Nem a europa.
Nem os deuses. Não se explica. Fim.

segunda-feira, abril 03, 2006

A flauta de Pã

No centro do universo, há uma nebulosa
oculta que, como um espelho inverso,
atrai e absorve toda a luz. Alguns dizem
que é aí a fonte da inocência, o país misterioso
dos anjos, com colinas e rios luminosamente
azuis. Alguns falam de naves transviadas,
e sentam-se nas margens a ouvir histórias
de astronautas voadores. Ninguém viu,
ninguém sabe – mas pode pressupor-se
que a matéria, no dia inaugural, sendo
excessiva, guardou num cofre os moldes
primitivos numa muito humana precaução
estelar. Assim, os mais ousados especulam
que essa tal nebulosa inversa é, na verdade,
a mais perfeita matriz de um futuro antigo
que, num jogo de espelhos, o passado
fabrica de contínuo e sem parar (e as fontes, rios,
anjos, e os astronautas em naves orbitrais). Talvez.
Mas há quem diga que no centro do universo,
em certos dias, o silêncio dos astros ressoa
estranhamente – e que a matéria inversa cristaliza
ao som ligeiro e breve da flauta de um pastor.

sexta-feira, março 31, 2006

O deserto

Suleimão, por tarde quente, atravessava
o deserto de camelo. Ruminavam,
Suleimão e o animal, um na vida
macaca, outro no feno. Há três dias
que o balanço da viagem fazia
tilintar os frascos nos alforges.
No silêncio absoluto, suponho, do deserto,
quilómetros em redor – seriam léguas? –
os tlins de Suleimão repercutiam-se,
sem falar das campainhas do camelo.
Onde quero chegar, não sei ao
certo. Mas Suleimão, na bossa
do camelo, lá saberá, melhor do
que eu, onde é que vai.