quarta-feira, março 08, 2006

O artista no ateliê

Olha, absorto, para os dedos, onde
um azul mais profundo persiste em
alastrar. À volta da música que veste,
de momento, um som de guitarra, alguns
corpos femininos inacabados esperam,
num destino incerto, um desejo de braços
ou de pernas, mesmo oblíquas, que lhes permita
supor um dia poder dançar. “Cobertas de
nudez”, pensa o artista, que dedilha agora,
ritmicamente, o rebordo da mesa, onde
um cigarro acabou de se finar. À direita,
um esboço, dir-se-ia, épico, de um painel
em tons renascentistas revisitados, onde
as múltiplas perspectivas remetem
directamente para a janela da parede
em frente, num horizonte urbano semeado
de colinas, rio e hipotéticos paquetes
atracados, “com sereia e marinheiros em
cordas”, pensa o artista; e pelos corpos
femininos em redor da música, agora
silenciosa, passa um leve rumor de desacordo
por esse futuro ambíguo de aguarela
imóvel em fundo azul. “Caríssimas”,
ouve-se murmurar, “o mundo é vasto
e múltiplos os caminhos”. A música
recomeça, uma guitarra e outra, e uma voz
trauteia palavras ininteligíveis e perfeitas
numa língua obscura que o artista acha
razoavelmente ser francês. “Que sentido
faz a linha melódica de um piano”, reflecte
o artista, retomando o contorno oval do desenho
inacabado, “outro que não o de contraponto
rítmico ao diálogo das cordas e da voz de
mulher”? “Não temais”, sorri o artista, “o criador
sustentará as criaturas”, numa paleta colorida
feita de motivos florais estilizados
e alguns espelhos, “na arte delicada de ser
fiel ao modelo e ao seu arquétipo mais geral”.
Um gato, no rebordo da janela, observa,
criticamente, uma abelha exterior a querer entrar.