quarta-feira, abril 12, 2006

O estado do mundo às 10 da noite

O meu avô jantava invariavelmente às sete
da tarde. Às oito ouvia as notícias,
a que se seguia o jornal, e tarefas várias,
como, por vezes, abrir um livro com
uma faca de papel comprada em Toledo.
Assim, por essa altura, o estado do mundo
às dez da noite era invariavelmente horizontal.
A invariabilidade do meu avô incluía
ainda uma certa verticalidade diurna,
aliada a lenços de algodão dobrados
na mais perfeita geometria. O meu avô
gostava de Aquilino e, no fim da vida,
tinha alguma dificuldade em perceber
a literatura contemporânea. Só muito
mais tarde achei extraordinário que alguém
que se deitava às dez da noite se interessasse
por literatura contemporânea. De momento,
limitei-me a não saber explicar-lhe.
Creio, na verdade, que foi ele quem
me explicou. Um avô que faz perguntas
serve para isso, exactamente. Muito embora
esteja pronta a conceder que o estado mundo
às onze da noite merece também alguma atenção.