domingo, maio 21, 2006

O vestido de ramagens

Dame Gilberta pousa o chapéu na cadeira
de palhinha. De repente, não lhe ocorre
a lembrança do que tinha vindo fazer.
Pela janela, o mar, o céu, o vento
sossegado, atravessam, em tom sfumato,
a transparência aérea das cortinas, que
banham a sala numa luz de outras eras,
quando era verão em todos os recantos
milimétricos do mundo. Dame Gilberta
sente-se vagamente numa história, cujos fios
parecem entretecidos pelos grãos luminosos
das poeiras em suspensão. É isso que a faz
parar na orla do tapete, presa numa teia
invisível de tempos sobrepostos e voláteis,
que convergem fugazmente no momento
exacto do dejà-vue. Bolas de sabão.
Poderia, com um gesto breve, desfazer
a película que a prende nesse arco-íris
flutuante, convocar a sombra da varanda,
por exemplo, esse mundo do outro lado
de onde chegam vozes abafadas de crianças
e o tilintar dos talheres. Dame Gilberta
pressente que o autor da história está sentado
na cadeira de palhinha, também ele imóvel,
também ele interdito, sem saber exactamente
o que fazer de um chapéu. Interrompeu,
de forma brusca, um qualquer sonho, onde
uma jovem mulher ganhava forma, num vestido
de ramagens (cor-de-rosa?), visível nitidamente
em contraluz. Temos agora um autor e a
personagem na mesma sala, onde, pelas cortinas
entreabertas, se desenha, a espaços, na madeira
do soalho, o rendilhado móvel das folhas
verdes do jacarandá. É a imagem que persiste
e se imobiliza, e que vejo no espelho, por sobre
o contador: Dame Gilberta olhando quem a olha,
enquanto o horizonte se enche de barcos e o céu
das três da tarde se demora no mais perfeito azul.