sábado, abril 29, 2006

Errata

à Ana Luísa Amaral

Na página 60, onde se lê:
"fundo espelho o rosto que me visse"
deverá ler-se "o quanto, o como, o quê"
(lembrar a correcção no índice).

Depois da citação de Mallarmé
em abertura: "Jamais um lance
de dados etc." ponha-se: "Sê
tu a margem onde um rio dance".

E, finalmente, onde "Conclusão"
(decerto posta ali pelo Editor)
leia-se apenas: "Última canção",

e no verso final onde está "mor-
te" pôr igual à primeira edição:
"um corpo desenhado pelo amor".

Bernardo Pinto de Almeida

quarta-feira, abril 12, 2006

O estado do mundo às 10 da noite

O meu avô jantava invariavelmente às sete
da tarde. Às oito ouvia as notícias,
a que se seguia o jornal, e tarefas várias,
como, por vezes, abrir um livro com
uma faca de papel comprada em Toledo.
Assim, por essa altura, o estado do mundo
às dez da noite era invariavelmente horizontal.
A invariabilidade do meu avô incluía
ainda uma certa verticalidade diurna,
aliada a lenços de algodão dobrados
na mais perfeita geometria. O meu avô
gostava de Aquilino e, no fim da vida,
tinha alguma dificuldade em perceber
a literatura contemporânea. Só muito
mais tarde achei extraordinário que alguém
que se deitava às dez da noite se interessasse
por literatura contemporânea. De momento,
limitei-me a não saber explicar-lhe.
Creio, na verdade, que foi ele quem
me explicou. Um avô que faz perguntas
serve para isso, exactamente. Muito embora
esteja pronta a conceder que o estado mundo
às onze da noite merece também alguma atenção.

segunda-feira, abril 10, 2006

Numa fotografia africana

A criança observa o sapato, com
um olhar doce. A liberdade de escolher,
a absoluta liberdade de correr, pára
nos esgotos a céu aberto. São coisas
que se sabem, mas que as botas,
de sete léguas muito embora, não podem
e muito menos devem explicar.
Nem a poesia. Nem a europa.
Nem os deuses. Não se explica. Fim.

segunda-feira, abril 03, 2006

A flauta de Pã

No centro do universo, há uma nebulosa
oculta que, como um espelho inverso,
atrai e absorve toda a luz. Alguns dizem
que é aí a fonte da inocência, o país misterioso
dos anjos, com colinas e rios luminosamente
azuis. Alguns falam de naves transviadas,
e sentam-se nas margens a ouvir histórias
de astronautas voadores. Ninguém viu,
ninguém sabe – mas pode pressupor-se
que a matéria, no dia inaugural, sendo
excessiva, guardou num cofre os moldes
primitivos numa muito humana precaução
estelar. Assim, os mais ousados especulam
que essa tal nebulosa inversa é, na verdade,
a mais perfeita matriz de um futuro antigo
que, num jogo de espelhos, o passado
fabrica de contínuo e sem parar (e as fontes, rios,
anjos, e os astronautas em naves orbitrais). Talvez.
Mas há quem diga que no centro do universo,
em certos dias, o silêncio dos astros ressoa
estranhamente – e que a matéria inversa cristaliza
ao som ligeiro e breve da flauta de um pastor.