sexta-feira, março 31, 2006

O deserto

Suleimão, por tarde quente, atravessava
o deserto de camelo. Ruminavam,
Suleimão e o animal, um na vida
macaca, outro no feno. Há três dias
que o balanço da viagem fazia
tilintar os frascos nos alforges.
No silêncio absoluto, suponho, do deserto,
quilómetros em redor – seriam léguas? –
os tlins de Suleimão repercutiam-se,
sem falar das campainhas do camelo.
Onde quero chegar, não sei ao
certo. Mas Suleimão, na bossa
do camelo, lá saberá, melhor do
que eu, onde é que vai.

terça-feira, março 21, 2006

Os rios ibéricos

Havia então um estripador em Toledo,
de ásperas mãos calejadas e mortais.
Nas profundas da noite, matando as horas
em obscuras soleiras, marcava o compasso
dos minutos com o selo indelével do fatal.
Fatal como passarem os morcegos e a fauna
nocturna das corujas. E o Tejo

deslizava mansamente.

A primeira mulher foi
com as águas, de Castela a Lisboa
navegando. Encontraram-na contando
coisas raras, Ofélia transtornada
e ofegante, na doca de Santos repescada.

O mar ao longe, com velas navegando.

As que se seguiram falavam da surpresa
do estuário, contando alvoraçadas
da viagem, de Castela ao Montijo,
a ver o mar.

E iam desfiando os malmequeres.

Mais aquém, em Toledo, alguém olhava
o Tejo, em escusas soleiras espiando
as silhuetas longas das mulheres.
Uma adaga rebrilhando, ao cavo som
dos sinos que choravam o enterro
do branco conde de Orgaz.

(quiçá comemorando o Dia Internacional da Pintura)

terça-feira, março 14, 2006

Sequência exclamativa

Ah, o doce mel das abelhas!
Os favos e a rainha-mãe!
Os goivos, as geribérias e as trepadeiras
subindo, encostadas ao portão.
Ah, o doce mel das palavras!
As acácias e as macieiras em flor!
As begónias debruçadas nas varandas
em rimas rítmicas, sob um sol maior.
Ah, a luz rubra das papoilas
num campo raso, entre girassóis!
Sem falar do voo das perdizes
nos pinheiros mansos, com pinhas
e pinhões! Ah, o encanto das encostas
verdes e o ladrar longínquo dos cães!
Vinhas em socalcos! Cidades transparentes!
Ah, o doce som da memória, as abelhas
leves, as colmeias, os lagares!
Ah, o doce canto da língua,
o chilrear dos pardais!

quarta-feira, março 08, 2006

O artista no ateliê

Olha, absorto, para os dedos, onde
um azul mais profundo persiste em
alastrar. À volta da música que veste,
de momento, um som de guitarra, alguns
corpos femininos inacabados esperam,
num destino incerto, um desejo de braços
ou de pernas, mesmo oblíquas, que lhes permita
supor um dia poder dançar. “Cobertas de
nudez”, pensa o artista, que dedilha agora,
ritmicamente, o rebordo da mesa, onde
um cigarro acabou de se finar. À direita,
um esboço, dir-se-ia, épico, de um painel
em tons renascentistas revisitados, onde
as múltiplas perspectivas remetem
directamente para a janela da parede
em frente, num horizonte urbano semeado
de colinas, rio e hipotéticos paquetes
atracados, “com sereia e marinheiros em
cordas”, pensa o artista; e pelos corpos
femininos em redor da música, agora
silenciosa, passa um leve rumor de desacordo
por esse futuro ambíguo de aguarela
imóvel em fundo azul. “Caríssimas”,
ouve-se murmurar, “o mundo é vasto
e múltiplos os caminhos”. A música
recomeça, uma guitarra e outra, e uma voz
trauteia palavras ininteligíveis e perfeitas
numa língua obscura que o artista acha
razoavelmente ser francês. “Que sentido
faz a linha melódica de um piano”, reflecte
o artista, retomando o contorno oval do desenho
inacabado, “outro que não o de contraponto
rítmico ao diálogo das cordas e da voz de
mulher”? “Não temais”, sorri o artista, “o criador
sustentará as criaturas”, numa paleta colorida
feita de motivos florais estilizados
e alguns espelhos, “na arte delicada de ser
fiel ao modelo e ao seu arquétipo mais geral”.
Um gato, no rebordo da janela, observa,
criticamente, uma abelha exterior a querer entrar.

domingo, março 05, 2006

Homenagem

O sol é grande, caem co’a calma as aves
do tempo em tal sazão que soe ser fria;
esta água que d’alto cai acordar-m’-ia
do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração que em vós confia?
Passam os tempos, vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d’amores.

Tudo é seco e mudo; e de mestura,
também mudando-m’eu fiz doutras cores:
e tudo o mais renova, isto é sem cura!

Francisco Sá de Miranda

sábado, março 04, 2006

Suite

do tempo, e com sezões
um gato mia.

sexta-feira, março 03, 2006

Alhos e cebolas

É o que leva no regaço a jovem
rainha inconformada, belíssima
no susto que a conduz. Na pele
aveludada traz ainda o lastro
do calor do leito, a memória sensível
das mãos do seu senhor – volúveis,
inconstantes, masculinamente
veementes no direito de a tomar.
Incontestável será esse direito.
Obediente talvez, como previsto
nos livros de registos, mesmo se
a memória é ainda a de um combate
a que, sem saber como, se entregou.
Agora foi à caça, o seu senhor e rei,
entre o estrondos das buzinas e o latir
da matilha ao grito dos peões.
Ágil, entre os seus. E ela caminha
na manhã da terra, desenhando
sozinha o seu roteiro que não passa
pelos caminhos que ele lhe der.
Apenas que ele lhe der. Um aroma
de rosas - a mão abre o regaço
e lento o sol penetra nas hortas
e pomares. Em nuvens de poeira,
o rei segue o veado. Oculta na
folhagem, a jovem corça sabe
que irá morrer no mar.