quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Fábula ou o direito à preguiça

“Absolutamente, disse o corvo. Levantemos voo”.
E foram reflectindo sobre
a curiosa página que acabavam de deixar.
O autor, entretanto, foi à pesca.
Abandonado por todos, o livro, enfim,
discretamente,
atreveu-se, com volúpia, a bocejar.

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Carta

Camarada:

O corpo do amor é como
a chuva, que tem caído abundante
e sem parar. Liquidamente
navega pelas ruas, em certas
horas talvez mais musical.

Se falo do amor, não pense
logo que falo do que sei,
ou do que vi. O que vi, e tenho
visto, é só a chuva, concreta-
mente em Lisboa e arredores.

Se a comparo ao amor, é uma
figura: porque a terra se abre,
o rio corre mais veloz, e mansa-
mente pode pensar-se em invisíveis
caravelas a singrar nos charcos,

pelas margens dos passeios,
afundadas pelos carros a passar.
Camarada: o corpo do amor
é como a água, nomeada-
mente a que pinga dos beirais,

e me recorda como brilha nova-
mente o sol sobre Lisboa (e nos subúrbios),
em Fevereiro, a vinte e um do zero seis.

domingo, fevereiro 19, 2006

Tudo o que ficou por dizer

Tudo o que ficou por dizer
porque de repente
era a hora do combóio
ou um telefone longínquo tocava
ou um qualquer acidente aconteceu.

Tudo o que ficou por dizer
porque o pudor calou a voz
porque um orgulho surdo a interrompeu
porque as palavras talvez já nem chegassem
ou era tarde
e o cansaço aos poucos foi levando a melhor.

Tudo o que ficou por dizer
porque a dor doía em demasia
e era necessário que as palavras
fossem capazes de ser claras como o ar
porque as palavras traem
como gumes de facas que nos cortam.

Tudo o que ficou por dizer
porque a tristeza apertou tanto a garganta
que nenhum som saía
nem o olhar continha
em desespero
uma lágrima ainda assim contida.

Tudo o que ficou por dizer
porque o tempo urgente
se esvaía
e de repente já não estava
no lugar a quem havia que o dizer
quem ainda há pouco nos ouvia.

Tudo o que ficou por dizer
e tudo
o que ficou por dizer
ou tudo
sempre
por dizer.

Bernardo Pinto de Almeida
(em nome do poeta que não sabia blogar:)

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

Da margem sul (I)

Que fique escrito: dos moinhos de maré,
na margem mais fronteira do Seixal.
Ou de como, em narrativas sobrepostas
(as linhas do horizonte), se sucedem as ruínas
das fábricas, das quintas, dos palácios,
em harmónica moral familiar:
pelos braços do Tejo as águas passam,
pelas margens do Tejo a terra guarda
memórias férteis do aluvião.
Que fique escrito: os barcos partindo ao
longe, do Barreiro, cruzando os arcos
dos moinhos de maré.

domingo, fevereiro 12, 2006

Primavera

Pendurava a tela na parede
quando um pardal, subitamente,
a atravessou. É o traço azul,
que foge da moldura.
- Em forma de cachimbo?
- Mais direito à janela,
em risco breve.

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Contabilidade cósmica

Os deuses desceram ao jardim do tabaco
e discutem a estratégia das empresas celestes.
Relatórios de gestão por sobre a mesa,
entre copos de ambrósia e um olhar que flutua
rente ao tejo. De humanos têm tudo,
excepto a pressa: devagar conferem, devagar
anotam, devagar levitam enfim, e transmigram.
Dir-se-ia a brisa encrespando as águas,
levemente partem a acender estrelas
(em números celestes, com contrato a prazo).

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

O assobio

Ao fim de três dias de vigília, o anão
Macário regressou à mina, congeminando
na absoluta inutilidade dos fantasmas.
A princesa dormia e nem cadeias nem uivos
tenebrosos a acordavam. Olhando pesaroso
o veio de ouro, os trezentos mil anéis
que conteria, sacou da picareta e deu um toque
vagabundo e distraído, congeminando
na primavera exterior, no som das rosas
que se abriam, na fragrância discreta
dos pessegueiros, no sono dela, e como não veria,
nem mesmo à transparência dos lençóis,
de seda muito embora, que a cercavam,
o verão chegar enfim e as cotovias.
Liricamente, assim o anão Macário meditava.
E os fantasmas, mansamente, descansavam.
À espera do assobio com que a princesa,
desperta desta vez, os convocava.