terça-feira, janeiro 31, 2006

A felicidade

- Tem horas?
- [Olhando para os dois relógios que usava nos seus dois pulsos:] Não lhe posso dizer.
- Porquê?
- Porque têm horas diferentes e não sei qual dos dois está certo.
- Diga-me então uma delas.
- Você quer saber as horas, não é?
- Sim.
- Se lhe digo uma delas, você fica sem saber as horas.
- Diga-me as horas do seu pulso esquerdo, que é o único em que era suposto ter relógio.
- Quatro e um quarto.
- E do pulso direito?
- Quatro e meia.
- Acho que vou perguntar as horas a outra pessoa.
- Espere!
- Resolveu o problema?
- Se alguém lhe disser as horas, como é que sabe que essa pessoa não tem no outro pulso outro relógio com outras horas?
- Sei, porque as pessoas só usam um relógio.
- Todas usam dois. Um deles é invisível.
- Olhe, felizmente.

[1995]

Poesia

no imediato tempo respirável
em que um alívio remoto se move e agita
os espaços inertes do nosso compromisso

nos lugares habitados por nós um dia
alheios à alucinação da nossa vida
e alheios à sua própria eternidade

[1990]

domingo, janeiro 29, 2006

Ao caçador de borboletas

Aviso

A poesia que se inscreve nestas páginas
é virtual. Desaparece com um leve
bater de asas (teclas, notas, um piano).

quinta-feira, janeiro 26, 2006

Formas mutáveis

O que fazemos à tarde é ver estampas,
vestindo e desvestindo fugazmente
aqui um rio oculto, ali um monte
com penas de pardais, fontes submersas,

e escarpas monstruosas, atravessadas
por pontes de veludo, verde e rosa,
que deslizam, elas mesmas, sobre os gumes
de espadas perfiladas, simplesmente.

O que fazemos de manhã é quase o mesmo:
é ver navios subindo nas eclusas
que a água enche, no sussurro ténue

de mil medusas abrindo lentamente,
sob a suspeita do corpo estranho e móvel
que as afaga; e o mastro rasga o céu
de nuvens altas.

À noite, o que fazemos é o deserto.
Comparativamente, isto é,
porque há camelos na linha do horizonte

entre colinas redondas como pêssegos,
e beduínos que as mordem, trôpegos
de tanta fome e areia e falta de água.

Passa a língua nos lábios, e na folhagem
docemente marulha o rouxinol.

quarta-feira, janeiro 25, 2006

Biblioteca

Entretanto, das lombadas dos livros
sai por vezes um vaporzinho
nem por isso subtil, nem por isso
diáfano, sulfuroso, ondeando. Flutua
explicitamente por cima das estantes,
pode ver-se subindo, a cauda
de um cometa que se alarga e distende,
preso por mil fios à raiz obscura
e química das letras, onde reina plutão
e a corte infernal dos hífenes e das vírgulas.
Eu vi e se não viste, não sabes
dos delírios, dos êxtases, do pasmo
que ferve nas entranhas do senhor
do papel, o deus dos dias claros.

sábado, janeiro 21, 2006

Sobre um conto infantil

Atrás da casa está um barco,
e no barco uma bandeira de três cores.
No convés, alguns peixes prateados
numa rede em filigrana. Dir-se-ia
que uma história muito antiga
regressa a casa, e com muito que contar.
Mas é a casa que anseia pelo largo,
vasto, azul, ligeiro navegar.

quinta-feira, janeiro 19, 2006

Motores de rega

Transporta-me para os campos luminosos
onde cresce a papoila e os castanheiros
fabricam o outono devagar. Ou vem comigo
ver o linho e o cânhamo, as terras húmidas
enquadradas por pomares. Esquece o mês,
esquece o dia, as horas são eternas, vão
passando eternamente à beira da estrada
ladeada de pinhais. A caruma
que se acama vem de longe, os fetos
fazem alas aos moscardos e ver as giestas
é a mesma coisa que ficar. Ou não será
mas, atentos aos mosquitos, os cucos
cantam nos motores de rega. E se vieres
ou me levares contigo, lá ao fundo,
desenho-te um ribeiro a ir para o mar.

domingo, janeiro 15, 2006

Outro poema urbano

A maravilhosa vista que se avista da torre
de menagem e que inclui a contagem
de colinas em dias de horizontes azuis
e largos, desapareceu há pouco
sem deixar rasto, embrulhada que foi,
ao que parece, no celofane poroso
do nevoeiro, que fez o rio subir
as escadinhas de alfama, até lisboa ser
uma gelatina informe e pouco clara
de ruelas e becos desfocados
e vapores abstractos em suspensão
naval. Aproveitam então as andorinhas
para, com o peso milimétrico da última
palhinha, fazer desabar mais um beiral.
O que se vê do povo é a silhueta mansa
de santo antónio dos bairros novos,
na vigésima colina, a da brandoa,
sem vistas para o tejo desta vez. E duas
ou três pessoas esperando, na maravilhosa bruma
da memória, a queda doutro prédio
e o vinte e seis. Em tempo mais clemente,
vê-se o pragal.

Nota

O caderno trinta e dois
está ilegível. Mas no caderno
trinta e três vem explicado que
os poemas estão somente
a germinar. A explicação
é plausível, já que se ouve,
no citado caderno, e a espaços,
um som remoto e vagamente
musical. São ondas numa praia?
A sinfonia do vento nos pinheiros
altos? O ritmo urbano de carros a passar?
A autora desta nota só garante que,
ilegível como está e impublicável,
o caderno mais notável é o trinta e dois.

sexta-feira, janeiro 13, 2006

Sete rios e um lago (muito urbano)

À estação de Sete Rios acaba de chegar
o comboio suburbano da linha de Sintra.
É primavera e no Jardim Zoológico
os ursos dão sinal de querer sair da hibernação.
É um facto que os dois factos dificilmente
se relacionam, excepto na tangente
cujo ponto de fuga é, um pouco mais acima,
o eixo Norte-Sul. Ao mesmo tempo,
outro comboio desliza suavemente,
no troço compreendido entre
o Aqueduto e a jaula dos leões. Também
não se relacionam, ou na medida apenas
em que, formosa e rosa,
a ponte vê passar os tubarões.
Antigamente havia quem chamasse encruzilhada
a um lugar assim, como este aqui.
Será por isso, creio, que os papagaios
nas gaiolas
aceitam de bom grado amendoins.
É também facto assente (e plenamente confirmado)
que na esplanada, debaixo das magnólias,
um passageiro lânguido e transfuga
suspira muitas vezes pelo verão
em Massamá
ou em mesmo ali,
no paraíso urbano,
entre golfinhos.
É quando vê aparecer, a espaços,
na bandeja, a cabeça degolada do revisor.

segunda-feira, janeiro 09, 2006

Vudu às 3 da tarde


O comedor de monstros, o perfeito
devorador de alquimistas loucos,
cansou-se da tarefa: e senta-se sorrindo
no muro imaginário que inventou
(e é transportável), contemplando
os humanos, onde monstros não há,
apenas gente como tu ou eu,
que do mundo sabemos quase nada.
Esse nada o intriga, e reflectindo,
desmonta a sua banca imponderável
e tenta de novo, um pouco mais à frente,
apanhar-te, a ti ou a mim,
a saber algo. É quando o pressentes
e te viras. E o remetes, com um olhar
que nem chega a ser fugaz,
para o mundo paralelo dos fantasmas.

domingo, janeiro 08, 2006

Em louvor das bicicletas


Aproximou-se e disse que S. Jorge
tinha derrotado o dragão. Ah, os livros,
respondi-lhe, desvairam muita gente.

Afinal era uma estampa e na seguinte
pintara o autor um dragão de bicicleta.

Uma cantiga amável


bordada com flores de pessegueiro
no espelho da barragem. Um vago azul
chinês e opalinas, na linha de água
a renda dos salgueiros.
Ai, eu! O ínfimo grão de areia
que contempla
a liberdade sem par das albufeiras.

E passam, amavelmente, as andorinhas.

Flamingos

Traços numa página em branco
levantam voo em sombra cor de rosa.