segunda-feira, maio 29, 2006

Parte II - Encruzilhada

A Sul, as oliveiras.
A Norte, vinhas e pinhais.
No interior das terras, os piratas estudam
atentamente as placas de sinalização.
Qual o caminho de regresso ao mar?

quarta-feira, maio 24, 2006

Em Lisboa, sobre o mar

vi chegar navios. Atravessavam
a sombra dos guindastes, majestosos
e lentos a entrar no cais. Vi,
na outra banda, a curva dos montes
e antigas fogueiras traziam mensagens
de Almada ao castelo, cercados
os homens de histórias de mar.
Vi chegar ao longe um canto
em surdina, cruzava um veleiro
na margem de cá. Planando,
o comboio na praça do Império,
rosáceas nos vidros, os claustros,
as cordas, os túmulos brancos
à beira do rio, entre bicicletas,
pontes de madeira com homens
suspensos face ao estuário
da margem de lá. Tão largo é
o dia! O amor tão fácil! Tão perto
o mar alto, abertas as rotas de anis
e coral! Contigo me irei
nas barcas antigas ao cabo
do mundo, seguindo as baleias,
atrás dos golfinhos. Vi uma gaivota
que veio de lá.

Em terra um mastro indica o caminho
dos piratas. Ao nascer do dia rumaram
a norte, atravessando hortas e pomares
com a pressa furtiva de quem está
meramente de passagem.

Tão breve é a noite! Tão branca é
a vela que oscila no rio! Tão fortes
os cabos que prendem na doca
os grandes cargueiros e os rebocadores!
Tenho o amor comigo
e se não tivesse
o rio faria o que eu não fizesse:
abriria os braços, deixando as marés
penetrar na terra, devagar cobri-la
de mar e sargaços. Nas águas
que sobem, cardumes de peixes
minúsculos afagam a margem de lá.

E o lodo enche-se de ameijoas
e berbigão. No espaço, o sabor líquido
da ribeira num horizonte de colinas.

domingo, maio 21, 2006

O vestido de ramagens

Dame Gilberta pousa o chapéu na cadeira
de palhinha. De repente, não lhe ocorre
a lembrança do que tinha vindo fazer.
Pela janela, o mar, o céu, o vento
sossegado, atravessam, em tom sfumato,
a transparência aérea das cortinas, que
banham a sala numa luz de outras eras,
quando era verão em todos os recantos
milimétricos do mundo. Dame Gilberta
sente-se vagamente numa história, cujos fios
parecem entretecidos pelos grãos luminosos
das poeiras em suspensão. É isso que a faz
parar na orla do tapete, presa numa teia
invisível de tempos sobrepostos e voláteis,
que convergem fugazmente no momento
exacto do dejà-vue. Bolas de sabão.
Poderia, com um gesto breve, desfazer
a película que a prende nesse arco-íris
flutuante, convocar a sombra da varanda,
por exemplo, esse mundo do outro lado
de onde chegam vozes abafadas de crianças
e o tilintar dos talheres. Dame Gilberta
pressente que o autor da história está sentado
na cadeira de palhinha, também ele imóvel,
também ele interdito, sem saber exactamente
o que fazer de um chapéu. Interrompeu,
de forma brusca, um qualquer sonho, onde
uma jovem mulher ganhava forma, num vestido
de ramagens (cor-de-rosa?), visível nitidamente
em contraluz. Temos agora um autor e a
personagem na mesma sala, onde, pelas cortinas
entreabertas, se desenha, a espaços, na madeira
do soalho, o rendilhado móvel das folhas
verdes do jacarandá. É a imagem que persiste
e se imobiliza, e que vejo no espelho, por sobre
o contador: Dame Gilberta olhando quem a olha,
enquanto o horizonte se enche de barcos e o céu
das três da tarde se demora no mais perfeito azul.

domingo, maio 14, 2006

DELIRIUM TREMENS

Os artistas precisam de álcool: a bebida
que os inspira. Na sua exalação, encontram
as nuvens de cor que os inundam da água
do espírito, onde eles mergulham para
capturar os peixes do sonho. De noite,
porém, pesam os pensamentos que
juntaram durante o dia. De um lado, o
prato das reflexões; do outro, a balança
inclina-se com as frases amargas, as
sentenças críticas, as imprecações contra
os deuses. Atiram tudo para o chão; e
pegam na garrafa, para voltar a encher o
copo. Mas a garrafa está vazia; e a sede
obriga-os a procurar outra bebida. Torneiras
fechadas, resta-lhes escreverem.

Nuno Júdice

terça-feira, maio 09, 2006

Zen

Na cozinha, o voo desordenado
de uma borboleta nocturna.
Podia ser normal. Será. Difícil
é o caminho para a janela
entreaberta. Talvez a noite
lhe ensine a rota dos mistérios, agora
que pousou no exaustor. Medita,
creio eu, no mês de maio. E assim,
discretamente, apago a luz.